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valter hugo mae

Outras famílias

 

Há uns anos, eu estaria na universidade e baixava ao Instituto de Medicina Legal para as aulas com o Professor Pinto da Costa, era frequente visitar o Museu Nacional Soares dos Reis para assistir à arte como quem regressa a um tempo do dia, uma estação do ano, um país de pendurar em paredes, que se repete eternamente. O que tanto há para ver nas mesmas obras? Perguntavam-me. O que tanto se vê no rosto de Aurélia ou na circunspecção das imagens de António Carneiro?

Numa dessas tardes, na escadaria, demorava-se um homem atrapalhado que eu julguei procurar a carteira ou as chaves de casa. Perguntei se o podia ajudar. Balbuciou alguma coisa que nem parecia sim nem parecia não. Era logo uma conversa adiantada, como se já viesse de trás. Esperei e ele aproveitou o meu braço e fez questão de subir comigo. Era pendurado no meu braço como hoje faço com a minha mãe. Mas era todo à pressa. Na dificuldade de mexer as pernas, tinha urgência e tentava levar-me imediatamente para diante dos quadros quando disse: são a minha família. Um a um. Meus tios, minhas tias e até os meus irmãos. Só não existem os meus pais, que morreram.

Eram talvez os quadros mais próximos de nós no tempo. Creio que talvez onde havia Alvarez e Julio, onde estariam imagens abstractas, nem sequer todas figurativas. E o velho homem encarava ao centro da sala e, sempre agarrado a mim, apontava com o outro braço a galeria inteira e repetia: tios e tias, meus irmãos.

Claro que julguei que lhe dava uma gentil loucura, uma insanidade bela e terna que eu podia entender. Quantas vezes eu mesmo olhei meus livros como gente, carregados de corpos prometidos que se amigavam de mim para sempre? Sorri. Não procurei negar nada. Ao contrário. Eu queria saber mais. Então, o senhor avançou para a sala seguinte, maior, aberta ao fundo para a extensão maior do museu, e parou. Pediu que reparasse na maravilha. Dizia: esta gente por aqui posta. Sempre verticais. São pessoas sempre verticais. Quem acontece na arte mostra é levantado de sua tragédia e vive para sempre na maravilha. E nós, os coitados, somos mais descendentes destas tintas do que das carnes das nossas mães.

 

 

Valter Hugo Mãe

Escritor

 

 

Créditos fotográficos @Ana Esteves Brandão

 

[O mais recente livro de Valter Hugo Mãe será apresentado no Museu Nacional Soares dos Reis, dia 29 fevereiro, pelas 19 horas. Entrada gratuita, sujeita a inscrição prévia. Saiba mais aqui]

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